quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Memória

ALÉM DOS MILAGRES

Passados 80 anos, o brutal assassinato de Maria Féa é contado de geração em geração e lembrado como o crime da mala

Por Elaine Saraiva



O cenário é o Cemitério da Filosofia no bairro do Saboó, em Santos. O dia, um domingo, 2 de novembro, Finados. Uma multidão está no local visitando, levando flores e velas para seus mortos. Entretanto, em um túmulo em especial, o cheiro e o calor das velas é mais forte. Trata-se do jazigo mais visitado e conhecido da cidade. É nele que está enterrada a mulher tida por algumas pessoas como “Santa”, Maria Mercedes Féa, personagem principal do assassinato que ficou conhecido como o Crime da Mala.

Há 80 anos, em Maria Féa foi encontrada morta dentro de uma mala que seu marido, Giuseppe Pistone, tentava embarcar para Bordeaux, na França, através do Porto de Santos. O mau cheiro do cadáver da italiana levaria à abertura da mala e ao início da investigação.

Pistone matou a esposa após descobrir que ela escrevera uma carta à sogra dois dias antes do crime, alertando-a sobre os delitos que o marido vinha cometendo. Como escrever correspondências assinando o nome de sua mãe dizendo que ia receber uma herança de 150 mil liras, deixada pelo pai. O objetivo era se associar ao tio, Francisco Pistone, dono de um armazém em São Paulo. Depois de descobrir a carta de Maria Féa, o casal discute e Guiseppe estrangula a esposa.

O jornalista José Carlos Silvares, em matéria publicada no jornal A Tribuna de 4 de outubro de 1978, conta que “enquanto Guiseppe Pistone pensava em suicidar-se, houve um grupo de portuários comentando que havia um mau cheiro e uma mancha vermelha no porão do navio. Imediatamente, é dado o alarme. A grande mala é desembarcada e aberta na presença de fiscais aduaneiros”. Dentro, é encontrado o corpo de uma mulher debaixo de roupas femininas, regadas a talco. Os joelhos foram seccionados com uma navalha para caber na mala.

Silvares lembra que o crime abalou o século XX, não apenas por seu caráter hediondo, mas também por ser inusitado para a época. Poderia ter sido o crime perfeito, o corpo na mala e o embarque no navio “ajudaram na perpetuação a partir da compaixão popular pela vítima e gerou uma devoção que é de grande importância”.

Um dos exemplos dessa compaixão é o de Marlei Augusto, de 42 anos. Ela conta que já conhecia a história de Maria Féa desde os tempos de escola. Passou a acreditar fielmente na italiana em 1986, quando uma senhora que sofria de uma séria alergia e necessitava de uma cirurgia, havia alcançado uma graça. “De lá para cá, eu, que já era devota, tornei-me ainda mais crente em Maria Féa”.

Marlei está próxima do local praticamente os 365 dias do ano. É que ela trabalha limpando campas no Cemitério do Saboó há 22 anos, e pouco depois de começar seus serviços, assumiu a campa de Maria Féa, em substituição a sua mãe, que também era devota. "Ser responsável por cuidar da morada da Maria Féa é como ser escolhida por Deus. Afinal, abrindo essa porta para mim, ela permitiu que eu pudesse criar meus sete filhos e estar até hoje trabalhando, já que são poucos os que ficam muito tempo aqui", diz Marlei.

MÍDIA
Em 2006, a comunicóloga Lilian de Jesus Assumpção de Melo, realizou uma análise da divulgação de milagreiros pela mídia impressa local, a partir do caso de Maria Féa. Lilian mostrou no texto que a “mídia influenciou a divulgação de cultos não-católicos contando histórias de forma massiva”.

Marlei relata que no programa Aqui Agora do SBT, nos anos 90, o apresentador Gil Gomes realizava episódios no Saboó, e, mais especificamente, na capela de Maria Féa. “Ele trazia modelos vestidas de noiva, para simbolizar a entrega dos vestidos de casamento, feito por devotas que recém-casaram”. E revela: “O Gil era devoto, e dos mais fervorosos!”.

Em 2 de junho de 2005, o programa Linha Direta Justiça, da Rede Globo, relatou a trágica história da italiana. “A televisão deu um bom impulso com as reportagens, pois as pessoas, muitas vezes, optam em se agarrar na fé para aliviar o desespero”, resume Marlei.

EX-VOTOS
Marlei conta que muitos gostam de manter o anonimato, como se pode notar pelas placas de agradecimento que, em sua maioria, contém apenas as iniciais do devoto. Em muitos casos a ajuda pedida é para a compra da casa própria, ou iniciar o financiamento. Esta é a situação de uma moça beirando aos 40 anos de idade, que apenas aceitou se identificar como Gláucia.

Quando os devotos têm seus pedidos atendidos, deixam pequenas casas de madeira, placas, cadernos, vestidos, bem como outros utensílios e acessórios próximos à capela de Maria Féa, os chamados ex-votos. Em seu estudo, Lilian define a expressão: “Os ex-votos são representações de objetos, geralmente usados no pagamento a graças ou milagres recebidos, referentes a personagens mitificados”.


NÃO CANONIZADA MARIA FÉA É ACLAMADA SANTA POR SEUS DEVOTOS

Em entrevista ao jornal A Tribuna, o falecido padre Antônio Olivieri aponta que a maior procura por representações como a da italiana se dão por se tratarem de vítimas de morte dramática, o que as torna “vedetes do povo”. Lilian, em seu trabalho, lembra que mesmo o culto aos milagreiros e santos não-canônicos no Brasil ainda é aceito graças ao sincretismo religioso existente.

Mesmo com toda a devoção que há em torno desta personagem, até hoje não teve início nenhum processo de canonização de Maria Féa. A informação parte do padre Caetano Rizzi responsável pelo Direito Canônico da Diocese de Santos. Para que houvesse canonização é levado em conta a história de vida de Maria Féa e estudos relacionados aos possíveis milagres realizados por intermédio dela.

No entanto, Lilian acredita que todo esse processo burocrático é desnecessário, pois o povo já aclamou Maria Féa como santa. “A mistura de credos que podem ser demonstradas nos ex-votos e manifestações populares é o que torna esta personagem ainda mais interessante”. E completa: “Os devotos buscam nela tudo aquilo que não conseguiram por outros meios. Na verdade o ex-voto valida o pedido atendido. A fé popular está acima destas disso tudo”.

No espiritismo, porém, a italiana é tida como um espírito evoluído, sendo a sua morte trágica uma forma de ajudar nessa evolução, ou simplesmente, uma maneira de resgatar algo que deixou para trás em sua reencarnação anterior.

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