quarta-feira, 26 de novembro de 2008

Profissão


A CATADORA DE PAPELÃO

Todo dia ela faz tudo sempre igual... Parece que estes versos de Chico Buarque foram feitos sob medida para esta mulher. Mas, nem mesmo a rotina cansativa consegue derrubar a alegria e os sonhos dela. Acompanhe, nesta reportagem, a trajetória de Neuza Helena, uma vida de coragem e determinação

Por Sheila Almeida


Ainda é escuro quando a senhora alta e morena, de 68 anos acorda. Às 4h30, quando se levanta, nem os pássaros estão acordados. O cenário é estranho. As nuvens acinzentadas no céu azul escuro e o frio das manhãs, mesmo no verão, convidam a voltar para a cama. Mas às 5h30 a mulher começa a sua caminhada diária.

Todos os dias ela chega pontualmente em seu trabalho. Seu escritório é a rua e, sua cadeira, uma caixa de madeira descartada pelo Sacolão, o grande estabelecimento que recebe frutas, verduras e legumes de todo o país.

A vista de sua “sala” é para os fundos do supermercado que garante o seu principal sustento, o Krill, na Zona Noroeste, em Santos. A frente do estabelecimento é na rua principal da região, a Avenida Álvaro Guimarães. Os fundos dão para a Rua José Alberto de Luca, onde a mulher fica todos os dias.

Lá, onde a “quase funcionária” fica, pode se ler nas paredes: "Horário de recebimento das 8h às 17h". Mesmo assim, ela chega antes das 6, mais cedo do que os outros trabalhadores. Sua jornada é longa. A mulher de cabelos grisalhos e olhos castanhos só vai embora após 5 da tarde, com quase 12 horas de trabalho. Seu serviço essencial é catar papelão. Ela está ali há 10 anos. Seu nome, poucos sabem. Alguns a chamam de Maria, Irene, dona Cida ou de “veinha”, em alusão à sua idade, mas apesar de poucos pertences, nome ela tem - se chama Neuza Helena. Quando pergunto, Neuza Helena do quê, ela responde: "De nada, oras. Neuza por parte de mãe e Helena por parte de pai. Era para ser Heleno, mas fizeram errado. Depois tinha Vinel, mas desde que me separei nunca mais usei esse nome".

Puxando a carroça de madeira ela quebra o cenário frio e vazio das manhãs com o seu sorriso. Não importa quem a olhe, está sempre alegre. Assim, inicia a rotina e faz o serviço completo: não só recolhe o papelão como também lava a lixeira do mercado e varre as calçadas do Sacolão. Em troca, ganha o pãozinho do mercado e uma fruta para café da manhã, quase sempre seu único alimento do dia, já que não tem dinheiro para pagar almoço e não gosta de pedir nada a ninguém.

Neuza espera algum caminhão chegar e descarregar as mercadorias. Ela diz que gosta desse horário, perto das oito da manhã, porque tem com quem conversar e pode começa seu trabalho. Às vezes quando chega perto das 14 horas, o dono do Sacolão a deixa entrar, pegar uma maçã ou um mamão como almoço. Para beber, só a água da mangueira. A mesma mangueira que ela usa para limpar a calçada e finalizar o trabalho daquele local. Depois, não há mais nada a fazer se não levantar, recolher o papelão, levar para a carroça e sentar-se novamente. Assim é o dia todo.

No final da jornada, às vezes com o carrinho cheio, às vezes não, a mulher de papelão vai trocar o material no ferro velho, que fica na mesma rua do mercado. Pelo quilo do papelão, pagam cinco centavos, por isso ela fica feliz quando acha uma moeda na rua, por acaso. O máximo que conseguiu juntar em um dia foi um real, equivalente a vinte quilos de papelão. Como não tem carroça, o dono do ferro velho a empresta para ela: "A Neuza trabalha há bastante tempo e é uma das nossas principais clientes".

Isso também explica a mudança de temperamento quando a senhora de bochechas rosadas vê algum outro pegando o seu papelão. As poucas palavras se juntam, numa voz mais grossa como num trombone, até o “invasor” se afastar.

Como é experiente no ramo, Neuza conta que fica feliz quando chove, pois apesar de ter que correr para não se molhar, o papelão fica na chuva e, por absorver água, o material fica mais pesado e rende mais dinheiro. Porém, se chover muito e tudo ficar encharcado, o dono do ferro velho prefere não comprar. A mulher de papelão conta que desde a primeira vez que fez esse trabalho, não ficou com vergonha: "Descobri que era melhor do que só catar o que comer, pois antes eu tinha que revirar o lixo".

Sua vida não foi só essa. Antes, o marido trabalhava e sustentava a casa. Depois que se separaram, trabalhou como doméstica por 14 anos. Sem estudo, pois repetiu a primeira série por cinco anos e só aprendeu a assinar o nome, ela não quer voltar à escola, não quer mudar de vida (a não ser que ganhasse na loteria, pois diz que começou a jogar) e já cansou de trabalhar: "Acho difícil arranjar emprego aos 68 anos".

Ela conta que já cansou de "levar o cano". Não pagavam direito e Neuza não tinha como se sustentar. De propriedade, ela só tem a casa que ganhou de herança da mãe. Nessas condições criou quatro filhos e mais três netos de uma destas filhas, que faleceu. Sônia, a filha mais nova fica com ela e ajuda a levar a carroça. As outras irmãs de Sônia trabalham em serviços domésticos.

Durante todo o tempo que passou atrás do mercado, a mulher de papelão conheceu muitas pessoas e viu muitas cenas do cotidiano, mas suas poucas palavras e sua memória fraca não conseguem lembrar nem explicar nenhuma dessas passagens. Durante o tempo que fica lá, aprendeu a ler umas palavras, não por junção das letras, mas por memorização, pois fica muito tempo sozinha, sem ter para onde olhar.

Quando não tem o que fazer nem com quem falar, reza. Desse jeito diz estar feliz, pois consegue viver sem mendigar: “Tudo o que tenho é de doação, as roupas, os móveis, o fogão, o colchão, e assim levo a vida. Não peço nada, as pessoas chegam aqui e me dão, aqui vou me fazendo”.

As roupas que eram doadas, agora a mulher de papelão vai comprar com o próprio dinheiro. Isso porque este mês conseguiu a primeira aposentadoria por idade: "Agora ganho um salário mínimo, quem diria".

Mesmo assim, com dinheiro certo todo mês, Neuza não abandonou a jornada: “Vivi aqui e não sei fazer outra coisa. Se eu parar, vou ficar triste, sozinha”. Sua maior vontade, a qual ela diz que está próxima a se realizar com o dinheiro que ganha, é viajar: “Não posso morrer sem antes ir para a Bahia, em Salvador, mesmo sem nenhum parente lá”.

Este é o sonho que faz brilhar seus olhos. E após tanto papelão, Neuza vê o dia morrer e com o sol desaparecendo, vai embora com a filha puxando a carroça, recomeçar mais um dia.

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